terça-feira, abril 22, 2008

Porque é Abril e não podemos esquecer

"A minha mãe continuou a ceifar. Andava já com os pés em ferida e os colegas, com pena, juntaram-se para lhe comprar uns sapatos. Passámos tempos muito difíceis. Íamos para a bicha do pão e do toucinho e quando chegava a nossa vez já se tinham esgotado os mantimentos. Vínhamos embora de mãos vazias depois de tanto tempo de espera. Passámos muita fome. A minha mãe chegou a pedir pelos montes de pessoas conhecidas. Muitas vezes cozinhava tomates com sebo de vaca, sem qualquer tempero"

"Tinha sete anos quando comecei a ir à escola em S. Mateus. Fazia mais de uma hora de caminho. Mesmo no inverno levava pouca roupa. Ia muitas vezes descalça ou com uns tamancos de sola de pau, que me magoavam os pés. O único agasalho que tinha era um xaile preto, feito dos restos de outro xaile da minha mãe. No verão levava um chapéu de palha. Tinha então apenas dois vestidos que usava de Verão e de Inverno. Um era azul às riscas mais claras e outro era axadrezado de vermelho, amarelo e branco. Por baixo, usava uma camisinha e uma combinação de flanela. Nesse tempo nunca tive um casaquinho de malha, nem sabia o que isso era."

"No triste dia 23 de Junho de 1958, fui à manifestação em frente à camara com o meu pai. Pouco antes, a GNR avisara-o para se ir embora. Quando me contou, perguntei-lhe porque não ia e ele respondeu-me que se os principais responsáveis pela concentração se retirassem os outro podiam perder a coragem, por isso ficaria até ao fim, para o que desse e viesse. Foi a última vez que falei com ele.
(...)
Quando começaram os tiros, os moradores das casas vizinhas abriram as portas para recolher as pessoas. Na casa em que me refugiei disseram-me pouco depois, que o meu pai tinha sido atingido, e estava morto ou gravemente ferido. Já não o cheguei a ver"

"Havia crianças carenciadas como eu que tinham direito a leite e queijo da Caritas e a roupa pelo Natal. Mas a mim nunca me deram nada. A desculpa era o facto de ser filha única, mas a verdadeira razão era a actividade política do meu pai"

"Regressavam dos interrogatórios com os olhos inchados, com o corpo todo pisado, muito maltratadas e quase mortas. Então protestávamos, pedíamos a presença de um médico ou de um enfermeiro e procurávamos lavar-lhes as feridas e ajudá-las dentro do possível. Algumas, depois da tortura do sono, não conseguiam durante muito tempo voltar a dormir"

"Quando fiz a 4.ª classe, uma professora da escola onde fui fazer exame, chegou a ameaçar-me de que ia reprovar, porque como não era baptizada, não era nada"

" Conheci muito bem o Germano Vidigal, um destacado sindicalista. Era calmo, delicado, pouco falador. Quando a G.N.R o prendeu, foi torturado até à morte. Um vizinho do posto da guarda, o Marques "Coxo", apesar de não ser propriamente um oposicionista, estava revoltado. Passava as noites à janela a pedir que alguém acabasse com aquele sofrimento. Outras vizinhas, apesar de fechadas dentro de casa, ouviam-lhe os gritos. As pessoas que o viram depois de morto passaram a informação de que lhe haviam esmagado os testículos."


Excertos do livro "A Memória das Mulheres. Montemor-o-Novo em tempo de ditadura", coordenado pela professora Teresa Fonseca e em que participaram várias mulheres da minha família.

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